18.4.24

No "Correio de Lagos" de Março de 2024

 

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No "Correio de Lagos" de Março de 2024

 

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13.4.24

À GUISA DE INTRODUÇÃO


Por A. M. Galopim de Carvalho

Se tivesse que escolher uma actividade extraprofissional, a condizer com a minha maneira de ser e estar na sociedade, relativamente ao conhecimento, seja o científico, em que fui profissional a tempo inteiro, seja qualquer outro, do erudito ao mais iletrado, escolhia, sem a menor hesitação, “divulgar”, elocução que, só muito depois de a praticar, aprendi que radica no latim divulgare, cujo significado é espalhar entre o vulgo, ou seja, entre o povo.

Devo começar por dizer que o meu interesse por saber coisas começou cedo, em criança, não na escola, que recordo como um lugar e um tempo de aflição e de algum sofrimento, mas sim, na rua e em tudo o que nela se passava, em todas as lojas, oficinas e artesanias de portas abertas e, também, nos campos agrícolas, em redor da cidade. Associado a este que se tornou num prazer, surgiu, mais tarde, o gosto de partilhar com os outros os saberes que ia adquirindo. Nasceu assim este meu pendor pela divulgação de saberes, um gosto, quase um vício, que me acompanhou ao longo da vida. Com o tempo, fui descobrindo ou criando formas de comunicação acessíveis ao público a que me dirigia, fazendo uso de uma linguagem falada, e escrita simples, sem perda de rigor, apelativa e agradável. Devo dizer que, em minha arreigada convicção, receber e facultar conhecimento são actos de prazer, mas também de cidadania.

Sem me ter dado conta de que o estava a fazer, iniciei praticar divulgação de conhecimentos durante a adolescência, no mundo rural, um mundo que conheci razoavelmente bem como praticante, activo e interessado, de um campismo selvagem nos campos do Alentejo, o longo dos anos de 1940. Foi no convívio com os camponeses que, em trocas de saberes, surgiu e se consolidou este meu interesse por partilhar muitos dos meus então pouco consolidados saberes. Algumas noções de Ciências Naturais, que aprendia no Liceu, eram tema das nossas conversas. Eu procurava ensinar-lhes as diferenças entre angiospérmicas e gimnospérmicas ou entre monocotiledóneas e dicotiledóneas, tal como vinha no meu livro de Ciências, mas eles sabiam-no e diziam-no por outras palavras, além de que davam nomes a todas as ervas, arbustos e árvores do seu pequeno-grande mundo. Com eles aprendi a distinguir os cogumelos venenosos dos comestíveis e a conhecer os pássaros pelos seus modos de piar e de cantar. Mais do que na escola, aprendi com eles os ritmos fisiológicos das plantas e animais, determinados pela sazonalidade, e a relacioná-los com as práticas agrícolas das diferentes estações do ano. Eu descrevia-lhes a fermentação e eles abriram-me os sentidos ao odor e ao calor exalados pelos montes de estrume. Falava-lhes da composição do ar e do papel do oxigénio na combustão e na vida dos animais e eles levavam-me a ver os fornos de carvão e a conhecer-lhes o cheiro característico. Foi no contacto com os camponeses que vi, na prática, a transformação da rocha em solo. A terra solta, as raízes que se lhe arrancavam, os restos das folhas mortas, apodrecidas, e a microfauna desse admirável e complexo ecossistema, estavam ao dispor de quem quisesse observá-lo, cheirá-lo, esfregá-lo entre os dedos e sentir e ver os grãos de areia e o pó fino, barrento, associado. Do pó da terra e da lama, ao barro e à argila ia um passo e, com mais outro, chegávamos à cerâmica das telhas, tijolos e loiça rústica, vermelha que ainda se usava. Falar de penicilina, das milagrosas qualidades germicidas deste então novíssimo antibiótico, explicando o significado deste e de outros termos do indecifrável jargão da classe médica, era o resultado de uma conversa a propósito do bolor do pão, de todos conhecido. Com esta convivência, interiorizei uma saudável ruralidade que sempre me acompanhou, ao longo da vida, e me permitiu caldear as influências elitistas do meio académico, no qual me movimentei durante cerca de quarenta anos. Com eles, sobretudo com eles, adquiri uma consciência social e política impossível de obter na escola e no dia-a-dia de uma cidade dominada, vigiada e censurada pelo regime político de então. 

Anos mais tarde, na primeira metade dos anos de 1950, repeti esta experiência com os soldados do meu pelotão de instrução, em Artilharia 3, em Évora, a minha cidade. Com estes ainda adolescentes, a quem tinha de dar instrução militar, foram muitas as oportunidades em que, em vez de lhes falar de canhões, munições, espingardas, e outras noções próprias da guerra, partilhei conceitos simples de ciência que iam ao encontro das suas profissões na vida civil. A propósito do que quer que fosse, havia sempre uma noção de química ou de física a explorar. Falei-lhe de sexualidade tema de que apenas conheciam a obscenidade e o palavrão. Entre letrados com apenas a instrução primária e analfabetos, rapazes da cidade e do campo, os recrutas eram esponjas de ouvidos e olhos escancarados.

Durante quatro décadas na Universidade de Lisboa (entre 1961 e 2001, na Faculdade de Ciências, e entre 1965 e 1981, na Faculdade de Letras, em Geografia), mantive estreita ligação com as escolas, quer como orientador dos estágios exigidos nas licenciaturas do ramo educacional, quer a seu convite, do pré-primário ao secundário, divulgando conhecimentos, adequados aos respectivos níveis de escolaridade, em torno de temas das Ciências da Terra, falados no mesmo tom e estilo, simples mas rigoroso e sempre alegre, que usei nas muitas palestras que fui fazendo em sociedades recreativas, centros culturais, bibliotecas municipais e outros estabelecimentos. Aconteceu que, num passa-palavra entre os professores, no caso das escolas, e entre outros interessados, fez com que me chegassem convites de todo o lado e a todo o tempo. Foi assim que me desdobrei em dezenas e dezenas de acções este tipo. Era e é do conhecimento geral que não cobrava nem cobro honorários e que apenas precisava e preciso de ter o transporte assegurado. Esta actividade de palestrante foi-se intensificado com o passar do tempo, tendo-se alargado a todo o território, quer no continente quer nas ilhas. A par destas conversas, lições ou palestras como se lhes quiser chamar, aceitei, com o mesmo empenho, a mesma simplicidade e a mesma alegria, os convites que me chegaram de quase todas as Universidades nacionais. Divulgar conhecimento científico ou qualquer outro entre os meus concidadãos de todas as idades e das mais variadas condições sócioculturais, foi a melhor forma que encontrei para concretizar a minha maneira de estar, ao mesmo tempo, na Ciência e na Sociedade.

“Velhos são os trapos” diz muito boa gente, preferindo usar o termo idoso que, assim, se generalizou. Mas pior do que ser velho ou idoso é ser pensionista contra vontade, como no meu caso, estupidamente afastado do serviço activo e colocado na “prateleira” por imposição do “limite de idade”. Foi o que me aconteceu. Ser descartado é um sentimento que magoa os velhos, em especial aqueles a quem a Natureza, embora os tenha diminuído fisicamente, deixou intacta a lucidez. Velhos que gostam de ser tratados, não pelos muitos anos que a tradição rotula de velhos, mas pelo que conservam de vigor, energia e entusiasmo.

Divulgar a ciência que cultivei como geólogo e professor de geologia, e tudo o mais que aprendi como curioso de muitas “artes”, foi a opção que tomei no sentido de tornar útil e agradável o meu tempo de pensionista. Desde então que reparto as horas a meu belo prazer, e dele fazem parte, entre outras ocupações, transmitir, pela palavra escrita e falada, o que a vida em sociedade e a profissão me ensinaram, a par de uma intervenção cívica que entendo dever ter como cidadão atento que nunca deixei de ser. Os vinte e dois anos de aposentação permitiram-me ler, com o empenho de quem estuda, temas que a absorvência da vida profissional sempre colocou fora do alcance da minha mão. Assim, “embalado” no ofício de professor, de estudar para ensinar, dei por mim a escrever sobre temas de arte, história, filosofia e outros e, ainda, sobre tudo o que a vida me ensinou.

Os textos que, com propósitos científicos e pedagógicos, de há muito venho divulgando, em livros e em textos avulsos nas redes sociais, têm como destinatários preferenciais os professores que, nas nossas escolas básicas e secundárias, se debatem com falta de elementos que complementem os tradicionais e repetidamente estereotipados manuais de ensino. Visam, ainda, o cidadão comum, interessado em conhecer o chão que pisa e lhe dá o pão. Continuo a escrever muitas horas por dia, indiferente a sábados, domingos, períodos de férias ou dias feriados. Isto porque os reformados estão sempre em férias e porque as férias servem para se fazer aquilo de que se gosta. A verdade é que, quando estou frente ao monitor, seguindo as palavras que, letra a letra, os dois indicadores vão dedilhando, num esforço de acompanhar e não deixar perder as ideias que fluem velozes, a verdade é que, dizia eu, não tenho idade nem as mazelas próprias dos gerontes. E, assim, o tempo se foi transformando em palavras sem que o tivesse visto passar.

Não sei quantos anos mais poderei desfrutar desta bela condição de poder sentir a vida. Serão certamente muito poucos, mas isso não me incomoda. Estou perfeitamente consciente das limitações físicas que os anos me impuseram, mas feliz, de bem comigo, com os outros e com o mundo. Já o disse várias vezes e volto a dizer que conservo comigo a criança irrequieta, curiosa de tudo e alegre que fui, o adolescente, inconformado, contestatário, audacioso e irreverente, próprio desses anos. Conservo também o adulto na força da vida, lutador que não dá tréguas e o velho que, a tudo isso, acrescenta a sabedoria, a paciência, a ponderação e a tolerância que os muitos anos ensinaram.

Quando, em 1977, o saudoso Prof. Rocha Trindade me convidou para integrar o grupo de professores do igualmente saudoso Ano Propedêutico, confrontei-me com a necessidade de escrever, semana a semana, capítulo a capítulo, os textos de apoio (os ap) que marcaram uma geração de portugueses agora a raiarem os 60 anos. Foi uma magnífica e saborosa experiência. Foi mais como divulgador do que como académico, usando de toda a liberdade que o sistema consentiu, que redigi as mais de quatro centenas de páginas desses textos, um êxito editorial com muitos milhares de exemplares vendidos. 

Nos 20 anos que exerci funções de direcção no Museu Nacional de História Natural (1983 a 2003), o meu gosto e empenho em divulgar conhecimento teve plena realização nas muitas exposições que ali tiveram lugar, com destaque para as organizadas em torno do tema dinossáurios. Devo dizer que, no conjunto com os funcionários deste Museu, todos nós sem qualquer formação teórica na área da museologia e aprendendo uns com os outros, concebemos e realizámos, entre elas, “Dinossáurios Regressam em Lisboa”, em 1992, uma das mais espectaculares e concorridas exposições de que temos memória em Portugal, com mais de 360 000 visitantes em apenas onze semanas.

A “Feira de Minerais Gemas e Fósseis”, Museu Nacional de História Natural, Iniciada em 1989, completou este ano de 2023, a sua 36ª edição. Também nelas me envolvi empenhadamente, usando-as como uma esplêndida via para divulgar conhecimentos em domínios da mineralogia e da paleontologia. A aceitação do público, das crianças aos adultos foi, desde a primeira, muito grande, testemunhada todos os anos por milhares de visitantes, tendo-se alargado ao Porto e a Coimbra, com regularidade anual, e a outras cidades com realizações esporádicas. 

O gosto pessoal que sempre tive pela divulgação, actividade que sinto como uma forma feliz de conviver e confraternizar com gente de todas as idades e condições sócioculturais, fez com que. nos vinte e dois anos que se seguiram à minha jubilação, intensificasse a escrita, quer em livros (uma vintena) quer em textos avulsos (alguns milhares) nas redes sociais, a par da de conferencista que trazia da chamada “vida activa”. A pandemia, que nos últimos tempos nos atingiu, levou-me a recorrer à modalidade de videoconferências via “zoom”, prática que continuo a utilizar nos casos em que os convites me chegam de localidades suficientemente afastadas da minha residência. 

Mesmo antes da jubilação acontecia muitas vezes acordar a meio da noite a pensar neste ou naquele problema de entre as matérias em que investigava ou ensinava. Sentia então uma irresistível vontade de me levantar, sentar-me à secretaria e trabalhar nele, ao mesmo tempo que, para lá dos vidros da janela do escritório, assistia ao clarear da manhã. Este hábito transformou-se num prazer e, respondendo ao desafio formulado por alguns dos meus mais de 33 500 leitores, de passar a livro muitos dos textos que diariamente, desde 2015, venho publicando no Facebook, eis-me a dar-lhes satisfação. 

 

“Ao Romper da Aurora” nasceu neste contexto e como resposta ao dito desafio.

 

 

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11.4.24

No "Correio de Lagos" de Fevereiro de 2024

 

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No "Correio de Lagos" de Fevereiro de 2024

 

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3.4.24

A CIÊNCIA E A RELIGIÃO SÃO COMO A ÁGUA E O AZEITE

Por A. M. Galopim de Carvalho

Foram muitos os homens e, nos últimos dois séculos, as mulheres, que pedra sobre pedra, foram erguendo o edifício da ciência, hoje ao nosso alcance. Esse esforço que, em sinal de respeito e reconhecimento, devemos procurar conhecer foi, para muitos deles, doloroso e, em alguns casos, fatal. No que diz respeito à Geologia, cultivar esta disciplina científica nos tempos anteriores ao século XIX teve os seus riscos. E não foram pequenos

Falar ou escrever sobre a origem da Terra e as suas transformações ou sobre o nascimento da vida e a evolução das espécies, incluindo o surgimento do homem, à luz da ciência e, inevitavelmente, em confronto com a “verdade” bíblica e com os dogmas decretados pela Santa Sé, não foi uma caminhada fácil. Foi, sim, causa de perseguições, sofrimento e, não raras vezes, de sacrifício da própria vida. Basta lembrar Averróis, no século XII, Giordano Bruno, no XVI, Galileu, no XVII, e Buffon, no XVIII, para nos darmos conta dos escolhos postos ao progresso desta e de outras ciências.

A idade de cerca de 6000 anos atribuída à história da Terra pelas Sagradas Escrituras, o geocentrismo, que impunha o Universo centrado no nosso planeta, os seis dias da Criação e o Dilúvio bíblico eram algumas das verdades inquestionáveis pelos seguidores da Fé e não havia lugar para os dissidentes, considerados hereges e, como tal, perseguidos. «Existem sóis inumeráveis e infinitas terras que giram à volta deles, como estes sete planetas que giram em torno deste Sol que nos é vizinho», escreveu o italiano Giordano Bruno. Por essa ousadia e por se recusar a admitir que a Terra se encontrava no centro do mundo, este filósofo dominicano, foi queimado vivo, em Roma, às ordens da Santa Inquisição, para purificação da sua alma pelo fogo, no dia 16 de Julho de 1600.

Se nos concentrarmos nesta parte do mundo onde nasceu e se desenvolveu a chamada civilização ocidental, foi, sobretudo a religião cristã que deu respostas a interrogações cruciais como a origem e a natureza do mundo vivo e não vivo. Do Universo ao homem, passando pelo nosso planeta, onde os mares, as montanhas e os rios, os vulcões e os sismos eram alvo de um misto de curiosidade e temor, tudo era explicado pelos doutores da Igreja. E essas explicações impunham verdades globais, definitivas e indiscutíveis.

A ciência, pelo contrário, não impõe. Propõe. Aponta explicações, sujeita-as a debate, a escrutínio e a verificações. Reformula-as em função da descoberta de novos elementos e, se necessário, retira-as do discurso, dado que o seu objectivo é a verdade dita científica.

Como é vulgo dizer-se, a ciência e a religião são como a água e o azeite. Não se misturam. Coexistem, mas cada uma no seu campo. É evidente que as atitudes de uma e de outra perante as entidades e os fenómenos naturais, são geradoras de confronto, hoje razoavelmente civilizado e pacífico nas sociedades civilizacionalmente mais avançadas, mas conflituoso e, muitas vezes, cruel e desumano, no passado. Apesar das perseguições, a ciência, com os seus argumentos objectivos e de apelo à razão, ia ganhando cada vez mais força. Foram muitas as vezes em que a igreja tentou submeter os “sábios” e pôr o seu trabalho ao serviço da Fé.

A Geologia foi, sem dúvida, um dos domínios do conhecimento científico cuja competição e cujos conflitos com a religião (em particular com a Igreja católica) foram mais graves e violentos. Oprimida e perseguida, durante séculos, por um catolicismo fundamentalista, a Geologia já ganhou, em muitos países, estatuto de ciência de grandeza compatível com a sua real importância na sociedade, o que não é o caso em Portugal, onde esta disciplina continua subalternizada nos currículos escolares e continua arredada da cultura geral dos portugueses, dos mais humildes e iletrados à elites intelectuais mais iluminadas.

Com algumas excepções, a ciência não é perseguida nos dias de hoje. De mãos dadas com a tecnologia, constituem alavancas poderosas para o bem e para o mal, ao serviço de uma humanidade a um tempo sabedora e desencantada, à procura de um caminho que tarda em encontrar.

Ao evocar filósofos, astrónomos, geógrafos, naturalistas, geólogos, mineralogistas e paleontólogos que, tijolo a tijolo e degrau a degrau, ergueram o maravilhoso edifício das Ciências da Terra, deparámo-nos, a cada passo, com a mencionada competição, que só terminou em finais do século XVIII, com a vitória do liberalismo.

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A esmagadora maioria das personalidades incluídas nesta obra são homens e isso deve-se unicamente à condição de inferioridade, nesses tempos imposta às mulheres, a quem o ensino era praticamente vedado. O século XX acabou com essa indignidade e, assim, são muitas as mulheres, hoje tantas ou mais do que os homens, que ocupam os bancos e as cátedras das universidades e participam na investigação científica e tecnológica.

 

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1.4.24

AQUELE BORREGUINHO BRANCO.

Por A. M. Galopim de Carvalho

“Comer o borrego pela Páscoa, no Alentejo, como no resto do País, está ligado a tradições religiosas e culturais chegadas até nós, vindas de longe, no tempo e na distância. É ler a Bíblia e ver como este simpático animal, com este ou outros nomes, se liga à tradição judaico-cristã, não sendo difícil procurar-lhe raízes ainda mais antigas. No antigamente, sacrificava-se o anho no altar; hoje come-se o borrego em reunião de família, depois de passadas as trevas e a dor, todos os anos evocadas durante a Semana Santa.

Nos meus tempos de criança quem tinha posses matava o borrego em casa, no sábado, logo pela manhã, a fim de que a sua carne pudesse figurar na ementa do almoço desse dia, já festivo, depois de bem anunciadas as Aleluias, ao meio-dia, nos carrilhões da Sé, logo seguidas pelo repicar de todos os sinos de todas as igrejas da cidade e arredores.

Era a festa! Era o fim do luto!

Umas semanas antes da Páscoa, por volta do ano de 1936, o meu pai comprou um lindo borreguinho acabado de desmamar, que já se governava sozinho se o deixassem em campo com erva.

Nós tínhamos necessidade de o levar a pastar, "fora de portas", no que nos disputávamos constantemente. Cada um queria para si o direito de segurar da corda que o prendia à coleira, onde chocalhava um pequenino guizo de latão. Vê-lo saltar, correr com ele que, por fim, já nos seguia, sem trela, e vinha ao nosso chamamento, era uma alegria nunca vivida. O Chico, que era o irmão mais velho dos então cinco irmãos, fez-nos saber qual era fim destinado ao nosso alegre e simpático companheiro de folguedo nos terrenos incultos e cheios de erva do lado de fora da muralha fernandina.

Inexoravelmente, aproximava-se o sábado, o dia do sacrifício. Cedo se organizou um “comité” de luta. Uns, entre os quais eu, tinham por missão espiar os planos do “inimigo”, procurando nas conversas dos pais os elementos com que os mais velhos delineavam as estratégias a empreender.

Já sabíamos que o tio Manuel, irmão do pai, caiador e homem de todas as profissões, viria sábado, bem cedinho, ocupar-se da matança antes que os sobrinhos acordassem. Eu teria quatro para cinco anos, era o mais novo; o mais velho, uns onze a doze e os três do meio, a Lourdes, a Beatriz e o Mário, faziam, entre si, diferença de um ou dois anos. Nessa manhã, após uma noite de vigília dos mais velhos, que se revezaram em quartos para que não falhasse a alvorada, levantámo-nos bem mais cedo do que a mãe pensava e aguardávamos o momento de dar execução ao plano traçado e meticulosamente aprendido por cada um, no papel que lhe cabia.

Entretanto, nos dias que antecederam aquele Sábado, tínhamos exercido intensa actividade de sensibilização da mãe, onde sabíamos estar a última palavra no desfecho do drama, chamando-lhe a atenção para a graciosidade do bicho, forçando-a a acariciá-lo, redobrando, para que visse, as nossas atenções e brincadeiras com ele.

- Ó mãezinha, ele é tão lindo! Nós gostamos tanto dele!

Visivelmente aflita, a mãe já não sabia o que fazer, dividida, por um lado, entre as dificuldades próprias de uma família numerosa e de posses muito limitadas e, por outro, o nosso amor por aquele animalzinho e a simpatia que, também ela, já nutria por ele.

Quando, no sábado, o tio chegou, a mãe, de olhos inchados e vermelhos, já estava no quintal com os alguidares e os preparos necessários. O tio trazia a navalha, bem afiada e bicuda. Num canto, o "mémé", branco de algodão, preso à trela, balia como que chamando a si a atenção da mãe que, roída por dentro de remorsos antecipados, evitava olhá-lo.

- Vá, Manuel, despache lá isso, depressa!

De rompante, descemos a escada de acesso ao quintal e berrando uns, chorando outros, rodeámos o animalzinho com tanta determinação que não houve quem tentasse, sequer, tirá-lo das nossas mãos. A mãe, mentalizada de há muito pela nossa acção, foi a primeira a ceder, mais aliviada do que contrariada. Afinal, também ela não queria o sacrifício do bicho e percebera a tempo o que essa violência representaria para nós.

O tio, completamente alheio ao drama, aceitou mal aquela mudança de última hora, não prevista e, sobretudo, o que mais lhe desagradou foi perder aquela pele branquinha que lhe renderia uns tostões. Saiu resmungando, indignado com a cena de insubordinação.

O pai foi o último a saber do resultado do confronto. Quando apareceu no campo da refega, a batalha estava decidida e não seria ele a pegar na faca. Não havia vencidos!

Havia Aleluias!”

Para o bicho, para nós e também para eles, de aliviados que ficaram. O pai acabou por ir ao talho comprar a carne que a mãe, de pronto, encomendou para a Festa que, assim, o foi de facto.

De um borrego qualquer, que nunca havíamos conhecido e passada que foi a tensão vivida, com que apetite comemos e que bem que nos souberam aquelas costeletas fritas com alho, aquele maravilhoso assado, no Domingo, e o ensopado, na Segunda-feira de Festa.

O borreguinho, acabámos por conceder, levou-o para o monte o senhor Domingos, o marido da nossa lavadeira, depois de nos prometer, solene, libertá-lo entre os outros que por lá andavam e não consentir que ninguém o levasse. – Nunca!

De vez em quando perguntávamos-lhe por ele.

- Está lindo e mais crescido!

– Ó paizinho, quando é que vamos ao monte do senhor Domingos ver o nosso amigo?

- Um dia destes! – respondia.

O tempo encarregou-se de diluir a nossa preocupação e de nos confrontar com a realidade que também nos ensinou a aceitar.

Esta história, tantas vezes contada em sucessivas festas de Páscoa, reunida a família em torno da mesa com a assadeira de barro ao centro, fumegante e apetitosa de odor e cor, sofreu ao longo dos anos retoques de todos nós, já crescidos, dando-lhe as cores que cada um tomou para si.

Porém, no essencial, foi isto que aconteceu, há uns oitenta e poucos anos. Nunca soubemos o destino deste nosso companheiro, embora não seja difícil imaginá-lo.

Para mim, em todas as Primaveras, há sempre, nos campos do Alentejo, um borreguinho branco e saltitante a perpetuar-lhe a imagem.

 

 

 

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31.3.24

 

30.3.24

Grande Angular - O melhor mês

Por António Barreto

Abril não é o mês mais cruel, como dizia T. S. Eliot. Bem pelo contrário, é o melhor. Pelo menos para nós. Também mistura memórias e desejos, como dizia o original. Mas não faz germinar lilases: aqui, Abril é o anúncio dos jacarandás. E dos cravos.

 

Começa amanhã o mês do meio centenário. Seguir-se-á um ano durante o qual tudo se dirá, da cruel verdade ao cómico dislate. Seminários, livros, programas de televisão, filmes, romarias, investigações e evocações, nada faltará. Se forem poucas as liturgias e raros os reflexos condicionados, talvez, dentro de um ano, saibamos mais sobre nós próprios.

 

Talvez sejamos capazes de perceber melhor por que razões a ditadura durou tanto tempo, por que motivos os portugueses deixaram que assim acontecesse. Ou antes, por que não foram capazes de melhor resistir e mais combater. Talvez sejamos capazes de saber melhor por que os portugueses ainda são mais desiguais, pobres, analfabetos e resignados do que outros na Europa. E pode também ser que venham mais argumentos que nos permitam compreender melhor as razões pelas quais, no grande continente que é a Europa, este povo pequeno, pobre e marginal resistiu, sobreviveu e insistiu na sua independência.

 

Se o meio centenário de Abril não for simplesmente, mesmo em nome da liberdade, a consagração dos actuais interesses, o respeito pela vassalagem e um festival de vingança e de intolerância, talvez as festas valham a pena. Abril não merece louvaminhas, muito menos represálias e desforras. Abril merece liberdade, tolerância e inteligência.

 

Bela maneira de comemorar Abril! Apesar da instabilidade e da desordem institucional, mau grado a fragilidade gerada pelos resultados eleitorais, a democracia resiste e funciona! Geneticamente marcado à esquerda, o 25 de Abril, cinquenta anos depois, sobrevive com saúde a vitórias das direitas, ao acréscimo das direitas radicais e à vulnerabilidade das soluções governamentais adoptadas. Não há melhor maneira de comemorar Abril do que esta de demonstrar que a democracia vive com a liberdade, com a revolução social e com o nacionalismo radical. Assim como com a integração europeia, a intervenção do Estado e o capitalismo liberal. 

 

No ano do meio centenário de democracia, um governo de maioria absoluta e com condições de estabilidade, isto é, o governo do PS foi derrubado e substituído por um governo sem maioria e com instabilidade garantida. Nesse mesmo ano, três parlamentos, o nacional, o madeirense e o açoriano, foram dissolvidos antes dos prazos previstos. O desperdício e a barafunda institucional ditam há muito a sua lei. Nem a democracia conseguiu mudar isso. Talvez seja uma consolação: os portugueses continuam a ser o que sempre foram.

 

A abstenção atingiu os 40% e já foi pior. Não é a mais alta da história, longe disso. Mas está entre o grupo das mais elevadas destes cinquenta anos. A abstenção é evidentemente desinteresse. Sinal dos tempos. Fraqueza de uma sociedade. Mas também advertência aos políticos e à política. Neste capítulo, Portugal não anda muito pior do que a Europa. Nem melhor.

 

Que belo modo de festejar o 25 de Abril! Toma posse um governo minoritário, enfraquecido e vulnerável como poucos antes dele. Mais parece um governo provisório dos idos de 1975. A solução encontrada para a presidência do Parlamento é engenhosa e imaginativa, não se pode negar. E revela civilidade de comportamentos. Mas não se pode esconder que seja também débil e de improviso. Se fosse a solução adoptada em caso de “bloco central” ou de qualquer coligação adulta e formal, muito bem. Sendo assim, como foi, é gesso em perna de pau!

 

Há mais factos a referir, neste ano de comemoração. A direita somada, moderada ou radical, em conjunto, atingiu uma das mais altas proporções da história: mais de 53%.... Nunca a direita radical, a direita de protesto, a direita nacionalista ou mais vulgarmente a extrema-direita, tiveram tantos votos com agora.

 

O mais antigo partido português, o PCP, com quatro deputados, quase desapareceu do Parlamento, onde já teve 44 eleitos. Após 103 anos de existência, um dos últimos partidos comunistas do mundo prepara-se para desfalecer. Curiosamente, ainda hoje é o partido mais temido por todos os outros, democráticos ou não, de esquerda ou de direita. E comporta-se como tal.

 

O partido mais antigo e mais claramente de direita democrática, o mais parecido que temos com a democracia cristã europeia, o CDS, quase desapareceu novamente e, se está no Parlamento, com dois deputados, é graças ao banco do pendura.

 

Todos os partidos ditos esquerdistas e revolucionários do 25 de Abril, criados um pouco antes ou logo a seguir, despareceram ou nunca chegaram ao Parlamento: LCI, UDP, MRPP, PCP (ml), POUS, OCMLP, PSR, além de outros. Nunca os partidos mais marcadamente marxistas, com ou sem deputados eleitos, somaram tão poucos votos como agora…

 

Este ano de comemoração vai ser de viva controvérsia. Não vão faltar os argumentos radicais. Progresso e miséria vão ser frequentemente referidos. Riqueza e pobreza não faltarão ao debate. Desordem e melhoramento serão facciosamente defendidos. Ainda bem. Pode ser que resulte, em fim de contas, mais conhecimento de nós próprios e menos idolatria.

 

Vamos ficar a saber que nunca o Serviço Nacional de Saúde esteve tão em crise como agora. Nunca os mais pobres foram tão mal servidos. Como saberemos ainda que nunca, como agora, tantos processos gigantescos de políticos e ex-políticos, de bancos, empresas financeiras e de serviços, de transportes públicos, de construção e de telecomunicações duraram tanto tempo, estiveram tantos anos em investigação e inquérito, à espera… Nunca como agora houve tanta desordem na imigração, tanta miséria na imigração ilegal e tanta desordem nas fronteiras. Ao mesmo tempo que, tal como nos anos 1960, os valores da emigração de portugueses para o estrangeiro atingem picos inimagináveis.

 

Mas também vamos ficar a saber que os últimos anos têm sido de rigor financeiro e de excedente público, de poupança e de diminuição da dívida. Que os rendimentos pessoais e familiares têm melhorado. Que a pobreza tem diminuído.  Que, apesar das escandalosas falhas, nunca houve tanta educação, tanta instrução e tanta formação como agora.

 

Abril é o melhor mês. Mistura memórias e desejos. Cravos e jacarandás.

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Público, 30.3.2024

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29.3.24

“O Avô e os Netos Falam de Geologia” - FINALMENTE, 4ª edição


Por A. M. Galopim de Carvalho

Este livro é uma ideia tão feliz quanto necessária e útil. O seu valor pedagógico é comparável aos cadernos de iniciação científica de Rómulo de Carvalho. Com uma diferença que lhe acentua a utilidade: é que me parece que precisam tanto dele os jovens alunos como os professores do ensino básico e secundário que temos e em que me incluo. Recomendá-lo-ei aos meus alunos do secundário, assim como tomarei a iniciativa de o recomendar aos colegas de grupo disciplinar e ainda solicitarei à direcção da Escola que adquira meia dúzia deles para a biblioteca. 

José Batista da Ascenção

Professor de Biologia e Geologia da Escola Secundária Carlos Amarante, Braga

 

Sobre o livro

Naquele Verão, era quase sempre com o Sol a descer para lá do Oceano, que o avô falava das muitas coisas que haviam preenchido o seu mundo como geólogo e professor de geologia. Sob o alpendre coberto de hera, no pequeno terraço anexo à casa, uma grande mesa com tampo de ardósia, onde se podia escrever com giz, e algumas cadeiras eram o centro preferido para estas conversas com os três netos. Liberta a mesa de tudo o que servira o jantar, o Domingos e os gémeos Francisca e Mateus, rodeando o avô, tinham nos olhos o brilho da curiosidade. Mais velho, o Domingos, terminara o 7º ano de escolaridade. O Mateus e a Francisca tinham concluído o 6º. O tempo de férias era agora todo deles, com praia pela manhã, jogos e leituras, dentro de casa, nas horas mais quentes da tarde e aquele apetecido convívio ao fim do dia, que os conduzia a maravilhosas viagens e aventuras. 

Embalados nas palavras do avô, “caminhavam” sobre rochedos em altas montanhas, “corriam” no solo fofo das estepes e pradarias, “pisavam” o chão áspero e duro dos vales secos e gélidos da Antárctida, “respiravam” a humidade quente e perfumada da floresta amazónica, “mergulhavam” nas profundezas do oceano e “nadavam” nas águas tropicais, límpidas e mornas, por entre corais e peixinhos de todas as cores. Ouvindo as histórias que o avô contava, “subiam” ao topo de vulcões jorrando lavas incandescentes ou projectando nuvens imensas de cinza, “escorregavam” nas dunas escaldantes no deserto do Sahara ou “percorriam” grutas repletas de cristais e imaginavam-se entre dinossáurios e muitos outros animais desaparecidos.

Encorajado pelo interesse e pela atenção dos netos, o avô não parava de falar. Paisagens que percorrera, profundas minas a que descera, museus que visitara, grandes figuras que conhecera e episódios que vivera ou presenciara eram condimentados com ensinamentos nos domínios em que trabalhara e que, ao mesmo tempo, estivessem entre as matérias constantes dos programas escolares destes três elementos do seu pequeno e interessado auditório.

E era tudo tão agradável e entusiasmante. Ouvir o avô era como ver um filme ao lado de alguém que explicava e tornava fácil o que parecia difícil de entender. A cada passo, as novas palavras necessárias ao discurso iam sendo descodificadas, “traduzidas por miúdos”, como dizia o avô, ganhando significado.

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(Na introdução da 1ª edição)

 

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27.3.24

ESCOLA PÚBLICA -CARTA ABERTA AO FUTURO GOVERNO

Por A. M. Galopim de Carvalho

(saído no Público online, no passado dia 20)

Na sua bem visível luta de há anos e que dá mostras de prosseguir, os professores têm posto a nu algumas vertentes da degradação da Escola Pública, uma deplorável e angustiante realidade. A oitava ronda do PISA (programa de avaliação da OCDE) dada a conhecer no ano que findou, mostrou que, em 30 países, Portugal ocupa o 30º lugar em literacia científica, o 29º, em Matemática e o 24º, em leitura, resultados que nos envergonham e revelam a deplorável e manifesta pouca importância dada a este sector da nossa sociedade. Com base nas classificações (os “rankings”, como se tem dito) oficialmente divulgadas, fica claro que Escolas Públicas más e alunos maus, em quantidade preocupante, são, entre nós, uma vergonhosa realidade. Temos vindo a esvaziar conteúdos e a criar resultados fictícios para mostrar à OCDE. As direcções das escolas são pressionadas no sentido de facilitar as aprovações e os professores são convidados a agirem em conformidade. Reprovar um aluno representa, para o professor, e para os colegas do conselho de turma, terem de justificar essa decisão, em moldes que mais parecem um castigo, a que eles fogem subindo as notas.

Salvo as muitas e boas excepções, estamos a lidar com uma geração de adolescentes sem qualquer interesse pelo saber, ignorantes de quase tudo, que não leem nem sabem escrever português, cujos pais, apenas desejam que os filhos tenham aprovação e, se possível, com boas classificações. Grande número de pais ou encarregados de educação não está à altura das suas responsabilidades. Pais e encarregados de educação, já instruídos e educados no pós-Revolução de Abril, a quem a escola deu, igualmente, muito pouco.

A classe política, no seu todo, a quem os militares de Abril, há 50 anos, generosa, honradamente e de “mão beijada” entregaram os nossos destinos, mais interessada nas lutas pelo poder, esqueceu-se completamente, entre outras realidades, de facultar conhecimento, civismo, cidadania, em suma, a uma sociedade que aceitou conduzir.

Entre os sectores da vida nacional, que muito pouco beneficiaram com esta abertura à liberdade e à democracia, está a educação e, aqui, a escola falhou completamente. A iliteracia cultural e científica, mesmo aos níveis mais básicos, de uma parte importante da nossa população, a todos os níveis socioprofissionais, a sucessiva e elevada abstenção em actos eleitorais, a irracionalidade e violência associada ao futebol e o elevado número de consumidores de programas de TV de mais baixo nível cultural são a prova provada desse falhanço. 

São muitos os portugueses a quem a escola deu e continua a dar diplomas, mas não deu e continua a não dar a educação, a formação e a preparação essenciais a uma cidadania plena. Educação, formação e preparação, três grandes défices que o dr. António Costa, em começos do seu mandato, já lá vão 8 anos, disse serem a sua grande preocupação, preocupação que, infelizmente, pouco passou das palavras.

Verdadeiros défices na educação, na formação e na preparação para uma cidadania plena abriram as portas a um populismo, a que a democracia deu voz e que, usufruindo da liberdade dessa mesma democracia, nos procura arrastar para um modelo de sociedade que a história já mostrou que sempre nos amordaçou, com consequências funestas. 

Todos sabemos que se alargou a escolaridade obrigatória e gratuita até ao 12º ano. E isso foi bom. Foi, mesmo, muito bom. No meu tempo, a escolaridade obrigatória e gratuita era a chamada 3ª classe (actual 3º ano). Todos sabemos que o parque escolar deu um grande pulo em frente, comparativamente ao de um passado que nos envergonhava. Mas a verdade é que não chega. Está, mesmo, muito longe de chegar.

Pergunto muitas vezes que infelicidade caiu sobre uma significativa parcela do nosso povo, que rejeita, com o sorriso da ingenuidade ou da iliteracia, tudo o que convide a pensar, a reflectir sobre si mesmo e sobre o que o rodeia. Um mundo, tantas vezes, nas mãos de políticos incompetentes e oportunistas de que a nossa sociedade está cheia, onde, de há muito, impera a corrupção, o vírus do futebol profissional e a promiscuidade entre a política, o poder económico e a justiça.

Todos sabemos que há boas e excelentes escolas públicas, que há bons e excelentes professores, que há bons e excelentes alunos, mas o essencial do problema que temos de enfrentar reside na quantidade preocupante de escolas más, professores maus e de alunos maus.

A mola real de uma verdadeira e eficaz política de Educação reside na dotação orçamental que lhe é destinada e que tem de ser adequada à importância deste sector na sociedade. Da satisfação desta necessidade depende a resolução de todas as situações e problemas do sector, de há muito, identificados.

A preparação de professores deveria ser pensada de molde a oferecer níveis de excelência compatíveis com a sua importância na sociedade, oferecendo saídas profissionais adequadamente remuneradas e atraentes.

O actual sistema de avaliação dos professores, demasiado injusto, não ajuda a elevar o nível do ensino. Avança-se por quotas e não por mérito. Praticamente, nada avalia. Propostas de avaliações a sério têm sido rejeitadas por parte dos muitos que não querem ou receiam ser avaliados. Neste capítulo, os maus professores, que os há e não são assim tão poucos, os tais que recusam as avaliações a sério e veem na Escola um emprego assegurado até à aposentação, têm contado com o apoio dos sindicatos, que põem ao mesmo nível os bons e os maus profissionais.

É preciso pôr em prática uma rigorosa supervisão científica e pedagógica dos manuais escolares. São muitos os que se repetem acriticamente, com noções estereotipadas e, por vezes, com erros, tantas vezes denunciados.

Impõe-se a necessária dignificação dos professores e educadores, num conjunto de acções, envolvendo salários compatíveis com a sua relevância na sociedade, colocações, libertação de todas as tarefas que não sejam as de ensinar e outras, postas em evidência nas suas reivindicações.  

O pessoal não docente representa um conjunto de elementos fundamental no universo do ensino, pelo que é forçoso dar lhes um tratamento, em termos de dignidade e de salários, a condizer.

É urgente demolir o obsoleto edifício da Educação que temos tido e, em seu lugar, fazer surgir um outro, concebido e levado a cabo, numa profícua colaboração entre governos e oposições, para durar três ou mais legislaturas. Desta vez, será necessário ouvir os bons professores (que os há) e dar início a uma campanha poderosa, com base na verdade e no dever patriótico, que entre na poderosa “máquina ministerial”, melhore o que tiver de ser melhorado e varra o que tiver de ser varrido.

 

Termino dizendo que considero os professores, incluindo os educadores, entre os mais importantes pilares da sociedade e, uma vez mais, que é necessário e urgente conferir-lhes o estatuto, a atenção e a dignidade compatível com essa importância.

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A. M. Galopim de Carvalho

Professor catedrático jubilado da Universidade de Lisboa


 

 

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23.3.24

Grande Angular - Vésperas

Por António Barreto

As últimas eleições não trouxeram soluções, nem tranquilidade. Muito menos estabilidade. É quase universal a crença na agitação que se segue, os desequilíbrios parlamentares e sociais, a instabilidade necessária e provavelmente as novas eleições a curto prazo. Polarização política e fragmentação partidária estão nas cartas. A animosidade pública nunca foi tanta. A virulência do argumento político nunca ou raramente esteve tão presente como agora. E note-se que a vontade expressa de todos os partidos de distribuir dinheiros a todos os grupos sociais o mais rapidamente possível não é sinal de força nem de abundância: é sinal de fraqueza e de competição demagógica. Nenhum partido se mostra capaz, por si só, de orientar, dirigir e impulsionar um esforço nacional, assim como de congregar forças rivais. Os principais partidos esperam o desastre dos outros e nada parecem fazer para ultrapassar a instabilidade que se anuncia.

 

O Chega tem sido a surpresa da vida política nacional. E das eleições. Os seus próprios apaniguados devem estar surpreendidos. Como já tanta gente disse, se aparecem e se têm este êxito, é por motivos que devem ser investigados, sentidos e estudados. E sobretudo compreendidos.

 

Se a democracia não consegue detectar as razões pelas quais o Chega aparece e progride, é porque é cega e estúpida. Se a democracia não consegue integrar o Chega na luta política, nas eleições e nas instituições, é porque é sectária e fanática. Se a democracia não consegue eliminar as raízes do Chega, assim como as terras que lhe são férteis, é porque não tem força. Se a democracia não consegue, por actos e gestos, não por palavras, mostrar à população a carga demagógica e ridícula da política da “vassoura e da limpeza” do Chega, é porque é politicamente impotente e culturalmente medíocre.

 

Em poucas palavras: ou a democracia transforma o Chega ou o Chega transforma a democracia. Nestes cinquenta anos, a democracia portuguesa conseguiu integrar, dissolver e transformar partidos extremistas e radicais, revolucionários ou não. A democracia portuguesa, mesmo vulnerável, mesmo imatura, conseguiu integrar e transformar os seus delatores e os seus subversivos. Também poderá fazê-lo a estes. Se souber mudar, ouvir, ver, sentir e perceber.

 

Esperam-nos grandes combates. Enormes confrontos. Entre partidos. Entre instituições. Entre grupos e classes sociais. Muitos consideram que tal facto é útil e essencial para a democracia. Dizem que só assim as pessoas e as organizações se esclarecem e se definem. Que só dessa maneira toda a gente é chamada a revelar as suas posições. Para uns, trata-se sobretudo de questão moral: cada um deve dizer ao que vem e o que quer. Para outros, a separação das águas é condição de luta e de esclarecimento: só assim, com separação e afrontamento, o bem e a verdade vêm à tona.

 

O problema é que os grandes combates deveriam ser travados, não uns contra os outros, mas contra a pobreza, a corrupção, a violência e o preconceito. Ora, tanto à esquerda como à direita, há gente que perfilha estas lutas e estes objectivos. E tanto à esquerda como à direita há também preconceito, cobiça e corrupção. Separar todas as esquerdas de todas as direitas é simplesmente declarar a guerra das classes. Sem proveito aparente.

 

Não se trata, como já há quem o diga, da velha lengalenga que afirma que “já não há esquerda e direita”, o que aliás parece ser um traço específico da direita. Não, não é verdade. Sim, há esquerda e direita. Só que nem uma nem outra têm o monopólio da verdade, da honradez e da liberdade. Nem uma nem outra têm o exclusivo da maldade, da cupidez e do despotismo. Mas há certos momentos, certas fases da evolução histórica, certas situações sociais e políticas que exigem esforço comum, convergência de objectivos e de uns tantos propósitos, sem os quais a deriva política pode levar facilmente a desastres.

 

Não é verdade que a divisão entre facções, entre partidos e entre instituições seja condição essencial para poder meter ombros aos outros combates, os mais graves e mais urgentes. Na verdade, os combates entre facções já destruíram muitas democracias. Da Alemanha à Rússia, da Itália a Espanha e a Portugal, do Brasil ao Chile, não faltam exemplos de países e democracias que se perderam nas lutas entre facções e onde os resultados nunca foram favoráveis à liberdade, à paz e à honestidade.

 

Mais do que nunca, ou quase, Portugal necessita de convergência entre as principais facções. Para evitar cenas como as vistas e ouvidas estas últimas semanas, por exemplo na justiça. Aqui, a guerra entre instituições, entre profissões, entre estatutos e condições, só pode levar a histórias como estas, de verdadeira obscenidade, com acusações definidas e apagadas, com arguidos pronunciados e ilibados, com prescrições anunciadas, com decisões feitas e desfeitas várias vezes. Os protagonistas da justiça têm dificuldade em dar-se conta de si próprios. Sem intervenção política de carácter nacional, de consenso e convergência, pouco ou nada será possível. Sem revisão profunda da política de justiça, da legislação e da organização, pouco ou nada há a esperar da justiça como contributo para a liberdade e a democracia.

 

Tanto quanto a justiça, saúde e educação necessitam de esforço jamais visto. Os dois mundos entraram em colapso e, sem reforma e trabalho colossais, novos desastres estão à vista. Mais ainda, o país parece condenado a uma sucessão de poucos anos de progresso seguidos de muitos de atraso. Ou uma espiral de pequeno melhoramento seguido de longo retrocesso. Um passo em frente, diante da Europa, dois passos atrás, perante a mesma Europa. Esta espécie de triste sina, de fatalidade, não resulta da sorte, é obra dos homens e das mulheres. Das elites e do povo.

 

Polarização e bipolarização! Há muita gente que acarinha estes termos e o que eles anunciam. Esquerda contra a direita! Classe contra classe! Capital contra o trabalho! Trabalho contra o capital! Tocar a rebate pelos combates vitais! Promover a guerra entre classes, entre instituições! Nada disso trará qualquer coisa de boa ao país e à população. 

 

União nacional? Nem pensar nisso. Nunca deu bom resultado, a não ser, em certos países, em tempo de guerra. Unidade de todos os partidos? Não resulta. Coligação de todas as esquerdas contra coligação de todas as direitas? É uma solução, mas não se afigura especialmente produtiva. Coligação das forças políticas centrais e moderadas? Está nas cartas. Mas há quem não queira ver.

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Público, 23.3.2024

 

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18.3.24

Pergunta de algibeira

 

Alguém é capaz de indicar os erros nesta imagem?

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16.3.24

Grande Angular - A glória fátua do desastre

Por António Barreto

As eleições realizaram-se a 10 de Março. Há uma semana. Os resultados conhecidos trouxeram grandes surpresas. Mas ainda não se sabe realmente quem ganhou. As previsões têm alta probabilidade, mas não são ainda certezas. O apuramento dos votos ainda não acabou. Não se percebe porquê, mas a contagem de votos de emigrantes fica para o fim. Poderia estar pronta desde as vésperas da eleição. Os resultados poderiam ser logo acrescentados aos primeiros dados conhecidos, evitando-se assim esta verdadeira desconsideração pelos eleitores a viver no estrangeiro. Tudo ficaria resolvido. Mas não. Ficam a faltar quatro deputados que podem mudar os resultados! E ficamos quase duas semanas à espera.  À espera... Os eleitores não percebem. Mas isso não importa.

 

Ainda não se pode dizer com segurança quem tem mais votos e mais deputados eleitos. Para efeitos de indigitação, não se sabe quem, pessoa e partido, vai ser chamado a formar governo. Assim, o governo não existe, nem se conhecem os futuros ministros. Por direito próprio, o Parlamento deveria reunir no dia seguinte à sua eleição. Apesar disso, entre nós, essa inauguração fica dependente de factores burocráticos e políticos pouco recomendáveis. Logo, o Parlamento ainda não reuniu, o que só poderá acontecer lá para 25 deste mês, pelo menos duas semanas depois das eleições. Não se conhecem ainda todos os deputados eleitos. Por isso, o Primeiro-ministro e os seus ministros ainda não tomaram posse. Pelo que não há programa de governo. Muito menos aprovação ou rejeição de uma moção de confiança ou de censura. O que quer dizer que não há sequer ideias sobre a possibilidade de se preparar orçamento novo ou rectificativo.

 

Sendo verdade tudo o que precede, não deixa de impressionar aquilo de que é capaz a imaginação dos políticos portugueses! Imaginação e espírito quezilento. Assim como egocentrismo impertinente e soberba partidocrática. Já vários partidos anunciaram que, sem conhecer governo, votariam moções de rejeição, não se sabe de quê, nem de quem. Outros garantiram que votariam contra o programa de governo e o orçamento que não conhecem pela simples razão de que não existem. Não se dão sequer ao trabalho de afirmar candidamente que “vão ler” ou “vão ouvir” … Não! Já sabem que não votam, nem querem.

 

O PCP vota contra. Ponto. O Bloco vota contra. Ponto. O PS faz oposição e vota contra. Ponto. O PSD diz que “não é não” e já anunciou há muito que não fala com o Chega, nem quer bloco central. O Chega diz que, se não for previamente consultado, vota contra. Convém repetir, pois parece inacreditável. Já há quem vote contra uma moção de censura, que não está escrita, que não se sabe se haverá, cujo autor se desconhece e cujo teor é um mistério. Não se sabe qual é o governo, nem qual é o seu programa, muito menos em que condições é formado, mas já se sabe que há quem vote contra. Parece que a força da oposição, das oposições, reside nesta maravilhosa frase digna de banda desenhada: “Não sei o que é, mas sou contra!”.

 

O PSD deixou-se enrolar naquela que foi a maior vitória dos Socialistas, que perderam a eleição, mas ganharam o combate. Com a ajuda dos mais pequenos e o contributo de umas pessoas avulso, conseguiram demover o PSD e obrigá-lo a afirmar, antes das eleições, que não fariam alianças nem governos com o Chega. Daí o famoso “não é não!”, autêntica corda para o suicídio. Pagou assim uma apólice de seguro de vida aos socialistas. E reforçou o papel do Chega na oposição, coisa que interessa de novo aos socialistas. 

 

De toda a maneira, isto tudo, que passa por ser o mais importante e é o mais falado, é próprio da coreografia do governo, da política e dos partidos, sempre mais interessados no adjectivo do que no conteúdo. Sempre mais preocupados com os processos do que com os objectivos. Sempre mais atentos às suas contas de “ganhos e perdas”, do que à realidade social e económica e à substância dos serviços públicos.

 

Estranho país este, esquisito sistema partidário este, em que os grandes partidos, de quem tudo depende, se revelam medrosos e covardes, enquanto os pequenos partidos, atrevidos como não se imagina, de quem nada depende, com menos de meia dúzia de deputados, ousam dar a entender que tudo depende deles, que “não estão dispostos para isto”, que “estão disponíveis para aquilo”, e que “não contem com eles para aqueloutro”.

 

Não conseguimos afastar esta sensação de que a classe política portuguesa não está à altura de resolver os problemas que cria. Uns, especialistas em minas e armadilhas, entregam-se à intriga com facilidade. Outros ainda, pretensos conhecedores da alma humana, dedicam-se aos adjectivos e aos processos da política, como se os meios fossem mais importantes do que os fins.

 

É lamentável ter de o dizer, mas há quem queira sempre o pior. São condenáveis as generalizações, mas somos obrigados a verificar que quase todos estão interessados no desastre, na impossibilidade de governo, na dificuldade da coligação, na impotência de qualquer solução, no adiamento de qualquer acção e na realização de novas eleições. O Chega quer subir ainda mais. O PSD julga poder assegurar uma maioria. O PS quer ter uma segunda oportunidade. Os pequenos partidos, à beira da evaporação, procuram uma saída. Todos convencidos de que, assim, liquidam o Chega e vão buscar os seus despojos. O que o país pode sofrer, durante os próximos meses, até anos, na economia, na sociedade, na política e na cultura, parece ser totalmente indiferente. O que importa é o casino da política e o puzzle das teorias.

 

Há duas hipóteses. Uma, a aliança da direita, entre PSD, CDS e Chega. Outra, dita de bloco central, entre o PSD e o PS. Quase ninguém quer uma. Quase ninguém quer outra. Acordos sólidos, mesmo se sectoriais ou parcelares, mas com palavra dada e documento escrito, conhecidos pelos eleitores e atraentes para os parceiros sociais? Também quase ninguém quer. Outras maneiras de participar, dialogar e colaborar, com ou sem participação no governo? Ninguém quer nem está para isso. O que terá dado a estes partidos, a esta classe política e a estes políticos para sacrificarem o seu país a interesses menores e a vaidades maiores? Querem a terra queimada e chamar-lhe paz e progresso…

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Público, 16.3.2024

 

 

 

 

 

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15.3.24

«Como Bola Colorida. A Terra, Património da Humanidade» 2ª edição actualizada, com prefácio do Prof. Carlos Fiolhais


Por A. M. Galopim de Carvalho

Merecia, há muito, uma reedição este livro, Como Bola Colorida. A Terra, Património da Humanidade, da autoria do Professor Galopim de Carvalho, publicado pela primeira vez na Âncora Editora em 2007. De facto, a expressão “há muito” não será a mais apropriada do ponto de vista de um geólogo, já que este lida com intervalos temporais de milhões de anos. Do ponto de vista da história da Terra, a edição e a reedição deste livro sobre as Ciências da Terra são praticamente simultâneas. Seja como for, a necessidade de reeditar esta obra diz bem do interesse que ela merecidamente continua a suscitar no público. 

A expressão Coma Bola Colorida, uma citação de um famoso verso do poema “Pedra Filosofal” de  António Gedeão, pseudónimo literário de Rómulo de Carvalho, o professor de Ciências Físico-Químicas que é o patrono da  cultura científica em Portugal, refere-se ao nosso planeta, que  tem belas cores: decerto o azul do mar e o verde da vida, mas também as cores das rochas, que podem ir dos tons claros do quartzo aos escuros do basalto, passando pelos cinzentos e rosa dos granitos e pelos tons vermelhos da algumas argilas (pois as há multicolores!). Mas uma criança que quisesse agarrar no nosso planeta teria de ter um tamanho gigantesco. Basta pensar que a bola onde vivemos tem cerca de 6400 quilómetros de raio, ao passo que uma bola de futebol adequada a uma criança terá cerca de 20 centímetros de raio. Um rapaz ou uma rapariga poderão ter entre um metro e um metro e meio. Feitas as devidas proporções, a altura da criança teria de ser à volta de 40 mil quilómetros, o que, parecendo muito, não é nada à escala do Sistema Solar: é um décimo da distância entre a Terra e a Lua.

Uma metáfora impressionar-nos-á tanto mais quanto mais fora da realidade estiver. E é indiscutivelmente uma bela metáfora aquela que Galopim de Carvalho escolheu, em 2006, para título do seu livro, publicado quando se comemoravam os cem anos do nascimento de Rómulo de Carvalho. A nossa “bola colorida” já deu 17 voltas ao Sol deste então. Estamos todos mais velhos. Mas na Terra não se nota muito. Só não está na mesma devido às modificações que lhe fizemos, das quais a mais grave será o aumento desmesurado dos gases de efeito de estufa, como o dióxido de carbono, na atmosfera. Mas, para quem tem 4,54 mil milhões de anos de idade, como é o caso do nosso astro, 17 anos não são nada, absolutamente nada. O livro mantém-se novo, tendo a revisão sido menor: naquilo que está bem não se deve mexer. Em particular, o prefácio de José Mariano Gago tem plena actualidade, pelo que se mantém rigorosamente na íntegra. Ao relê-lo, senti saudades do seu autor: faz-nos falta aqui neste nosso quinhão do planeta para avivar a luz da ciência. Foi ele que instituiu, em 1996, o Dia Nacional da Cultura Científica, precisamente no dia de aniversário de Rómulo de Carvalho, para prestar justa homenagem aquele que, além de professor e poeta, foi também um grande divulgador de ciência.

O geólogo Galopim de Carvalho, a quem um dia chamei “Mestre das Pedras e das Palavras” por ser tão exímio com as primeiras como com as segundas, é, na esteira de Rómulo, um grande divulgador de ciência. Com uma vivacidade que tem resistido ao passar dos anos (para ele os anos que sejam abaixo de um milhão não são relevantes!), tem-nos dado o melhor do seu saber e talento quando nos descreve a incrível variedade da Terra e nos conta o longuíssimo processo histórico que moldou o nosso lugar no espaço. Neste livro, que acresce a mais de três dezenas de outros seus títulos, Galopim traz-nos, num português de lei, uma síntese dos resultados mais importantes das Ciências da Terra:  a estrutura, a dinâmica, a pluralidade de paisagens do nosso planeta, incluindo as pródigas marcas da vida que é quase tão antiga como ele. Galopim de Carvalho usa um recurso que Rómulo de Carvalho (por coincidência, partilham o mesmo apelido!) também usava desenvoltamente e que devia ser mais comum na divulgação da ciência entre nós: recorre à história da ciência. Mostra assim que a ciência é uma conquista humana, um conjunto de conhecimentos que foram duramente extraídos da Natureza pelos cérebros e mãos de diligentes seres humanos ao longo do tempo, uns na peugada dos outros, num empreendimento contínuo e a continuar. Mais importante que os conhecimentos, são os métodos para os obter. Sim, é contada em traços gerais a história da Terra, mas é também contada a história da tomada de consciência da historicidade geológica, que é muito recente. Com efeito, foi só no século XIX que os geólogos se aperceberam da enormidade da nossa história planetária, ultrapassando antigos preconceitos, alguns de raiz bíblica. Os geólogos que olharam para as modificações lentas e graduais da Terra foram-lhe dando uma idade aproximada que nada tinha a ver com as mitologias e que excedia mesmo largamente a que era estimada por físicos e químicos com base em considerações termodinâmicas. E era mais fiel a sua cronologia, justificada pela acumulação de observações de lagos e oceanos, vales e montanhas, estratos e fósseis, etc. do que a dos seus colegas físico-químicos, fundada em modelos matemáticos.

Ao  Terra tem sido palco de um rol de acontecimentos, não raro surpreendentes: arrefecimento a partir de uma massa ígnea inicial, impacto com outro astro para originar a Lua, quedas de meteoroides, formação dos oceanos, surgimento dos primeiros organismos, início da fotossíntese e oxigenação da atmosfera, proliferação da vida com a «invenção» do sexo, extinções maciças por razões em parte misteriosas, movimentos de placas tectónicas e outros, sismos e vulcões, idades do gelo, e, nos nossos tempos, as transformações de responsabilidade humana que alguns julgam merecer um novo período geológico: o Antropoceno. Se hoje sabemos algumas coisas sobre estes fenómenos foi graças aos esforços de homens e mulheres cujos nomes vêm referidos neste livro. Mestre Galopim é o nosso guia nessa viagem nas páginas que se seguem, destacando naturalmente os sítios e eventos em Portugal, onde está ou de onde vem a maioria dos seus leitores.  Ele preocupa-se com a fácil compreensão por parte de quem lê, nunca subestimando a inteligência dos leitores, uma regra básica na divulgação científica. Por exemplo, tem o cuidado de nos explicar, recorrendo a grãos de arroz e a badaladas de sinos, o que significa um milhão de anos, que afinal é uma «migalha» na história da Terra. Para nos acicatar a imaginação, fala de um bolo de aniversário para a Terra com 4540 milhões de velas. São, indiscutivelmente, muitas velas! Quando os dinossauros desapareceram, o bolo «só» tinha 4474 milhões de velas.

Se com José Mariano Gago a ciência entrou nas nossas casas, é preciso que ela entre mais e que fique bem instalada. Galopim de Carvalho é um exemplo inspirador de como é possível, com vista a tal desiderato, fazer bem-sucedida divulgação de ciência, num país em que largos sectores são avessos à ciência. São utilíssimos livros como este que descrevem em linguagem simples o chão que pisamos, o seu início e as suas metamorfoses, as suas riquezas e misérias, os seus encantos e mistérios. Em meu nome e – seja-me permitido – em nome de todos os leitores expresso-lhe a minha, a nossa, gratidão, por tudo o que temos aprendido dele e com ele. Sei que a vida humana é um lampejo em comparação com o tempo da Terra, mas desejo que, no seu caso, esse lampejo se prolongue, prosseguindo a iluminação que tem espalhado. Desejo que o «Mestre das Pedras e das Palavras» continue a ajudar-nos a compreender o nosso planeta não só com a sua grande sabedoria, mas também com a sua enorme jovialidade e a sua extraordinária simpatia.

Coimbra, 15 de Dezembro de 2023

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